Spin Boldak, Afeganistão - Na fronteira entre o Afeganistão e o Paquistão, dezenas de caminhões coloridos, carros e riquixás cruzam uma estrada de areia, criando espessas nuvens de poeira. A atmosfera é tensa, e a chuva começa a cair enquanto os guardas de fronteira das autoridades de facto tentam organizar a entrada e saída de veículos. 

Há alguns meses, as trocas de tiros resultaram em mortes em ambos os lados do "Ponto Zero", o limite entre o Afeganistão e o Paquistão. Desde agosto de 2021, as tensões entre os dois países se intensificaram. Brigas entre guardas em áreas fronteiriças como Spin Boldak ou Torkham são recorrentes¹.

Guardas de fronteira organizam a entrada e saída de veículos. Foto: OIM/Léo Torréton

Do leste ao sudoeste do Afeganistão, através da Linha Durand, uma cerca de aproximadamente 2.600 quilômetros de comprimento divide os dois países. Os holofotes controlados pelos guardas de fronteira iluminam as montanhas para garantir que nenhum viajante, de refugiados a migrantes, atravesse para o outro lado durante a noite. 

Do outro lado da Linha Durand, uma cerca de aproximadamente 2.600 quilômetros divide o Afeganistão e o Paquistão. Foto: OIM/Léo Torréton

No entanto, muitos afegãos tentam viajar para o Paquistão, seja regular ou irregularmente, geralmente para trabalhar, estudar, procurar tratamento médico, visitar a família ou fugir de situações de risco. As rotas designadas para o contrabando de migrantes estão sendo utilizadas com mais frequência, pois muitos afegãos não possuem a documentação legal necessária para viajar. Em março de 2023, pelo menos 340 mil afegãos viajaram para o Paquistão através dos pontos de fronteira e estima-se que um número ainda maior tenha viajado através de pontos de passagem irregulares. 

Um fluxo constante de homens, mulheres e crianças atravessa o labirinto de corredores e telas de arame que formam a fronteira. Eles caminham através da chuva torrencial, com sacos pendurados sobre seus ombros, seus pés arrastando-se por poças e lama, para chegar ao outro lado. Quer estejam saindo ou regressando ao Afeganistão, o fluxo de pessoas é contínuo. Equipes da Agência da ONU para as Migrações (OIM) estão presentes em ambos os lados da fronteira, contabilizando as partidas e as chegadas e fornecendo exames de saúde para detectar doenças transmissíveis ou propensas a epidemias com o objetivo de reduzir qualquer risco de exposição em suas comunidades. 

Muitos dos retornados do Paquistão atravessam a fronteira para voltar ao Afeganistão. Foto: OIM/Léo Torréton

Hoje, o Centro de Recepção da OIM em Spin Boldak está recebendo cada vez mais repatriados indocumentados e deportados que não obtiveram ou não conseguiram obter status legal no Paquistão. Desde o início do ano, houve um pico de afegãos indocumentados sendo deportados. Mais de 2 mil pessoas foram deportadas de janeiro a março de 2023, em comparação a 500 no mesmo período do ano passado. É provável que esse número ultrapasse rapidamente o número total de deportações registradas em 2022 (2.900). 

"Nossa casa foi danificada devido à explosão de uma mina terrestre", diz Zari Gul, uma afegã de 53 anos, mãe de seis filhos. "Meu marido e eu fomos forçados a ir para o Paquistão devido ao conflito [há alguns anos]." 

"Quando nos mudamos para o Paquistão, meu marido encontrou um emprego fazendo diárias, mas nos últimos meses, a polícia prendeu todos os afegãos [no meu bairro], e também prendeu meu marido", acrescenta. "Eu descobri que ele foi detido depois de um mês e quando eu fui para a delegacia, também fui detida com meus filhos. Havia muitos afegãos. Nós mulheres estávamos em um quarto e os homens estavam em outro; eles não nos deram alimentação adequada." 

Em razão das complexidades na relação entre os dois países, as condições dos afegãos irregulares no Paquistão estão se deteriorando com relatos recentes de pessoas detidas por vários meses antes de serem enviadas ao Afeganistão novamente. 

Muitos retornados do Paquistão cruzam a fronteira para voltar ao Afeganistão. Fotos: OIM/Léo Torréton

"Durante o conflito no Afeganistão [há vários anos], fomos deslocados de Uruzgan para Kandahar", diz Basmina, uma afegã de 45 anos, mãe de quatro filhos. "Não tínhamos uma boa vida em Kandahar, então meu marido decidiu que iríamos todos para o Paquistão." 

"Três anos depois, ele teve problemas de saúde e morreu. Eu era uma mulher solteira no Paquistão e meus filhos eram pequenos. As pessoas diziam que a polícia capturaria afegãos e os levaria para a prisão se não voltassem para o Afeganistão. Saí, mas dois dos meus filhos ficaram." 

Basmina sentada na Casa de Passagem da OIM refletindo sobre seu retorno ao Afeganistão. Foto: OIM/Léo Torréton

Exausta após sua perigosa viagem, Basmina chegou ao Centro de Recepção em Spin Boldak e, por meio do transporte fornecido pela OIM, foi transferida para a Casa de Passagem da organização em Kandahar, onde pôde passar a noite e receber assistência. 

Relutante em retornar à sua vida em Kandahar, ela explica: "Não tenho liberdade para sair quando quiser." Mesmo antes de ir para o Paquistão, Basmina nunca possuiu quaisquer documentos legais, e hoje permanece sem documentos. Deslocar-se por Kandahar como uma mulher solteira, com as regras e normas impostas pelas autoridades de facto, é quase impossível. 

"Meus outros dois meninos são menores de idade, e eles são os que trabalham para que tenhamos uma renda. Eu gostaria que minhas duas meninas pudessem ir à escola." 

Cada vez menos retornados indocumentados e pessoas deslocadas internamente no Afeganistão têm a documentação adequada. A falta de acesso aos documentos de registro civil, incluindo o Tazkira, a carteira de identidade nacional, e os passaportes, é o resultado da prestação intermitente de serviços pelo Departamento de População e Registro do Afeganistão. Além disso, mulheres como Basmina e membros de grupos étnicos minoritários são mais propensos a não serem documentados porque nunca obtiveram documentos devido a normas políticas e socioculturais históricas. 

Durante suas viagens, os retornados indocumentados são mais propensos a enfrentar violações dos direitos humanos por parte das forças de segurança nacional de países vizinhos e de trânsito. Entre as violações estão o uso da força e armas de fogo, tortura e outros tratamentos ou punições cruéis, desumanos ou degradantes. É essencial que a comunidade humanitária promova a conscientização e lute contra esses abusos e que as autoridades de facto facilitem o acesso à documentação civil para todos. 

Equipes da OIM realizando a triagem de viajantes de ambos os lados da fronteira. Foto: OIM/Léo Torréton

As equipes da OIM oferecem assistência a mulheres como Basmina para que possam se comunicar com suas famílias e conseguir abrigo, comida, oportunidades de subsistência e outros serviços essenciais ao retornarem ao Paquistão. A OIM também está trabalhando com parceiros nos Centros de Recepção e Casas de Passagem para aumentar a conscientização sobre a documentação legal entre os repatriados indocumentados para que eles tenham uma melhor compreensão do processo de obtenção de documentação legal e o benefício de possuir tais documentos. 

Em 2023, com base no recebimento de recursos adicionais, a OIM planeja fornecer assistência de proteção a 6.500 migrantes afegãos indocumentados que retornam do Paquistão através das fronteiras de Spin Boldak e Torkham. 

Após o decreto de 24 de dezembro de 2022 que proíbe as mulheres afegãs de trabalharem com organizações não governamentais nacionais e internacionais ter sido recentemente aplicado às mulheres que trabalham para as Nações Unidas, a OIM foi forçada a suspender temporariamente as operações, uma vez que é impossível prestar assistência humanitária baseada em princípios sem o acesso à metade da população. Como resultado, as retornadas indocumentadas que viajam sozinhas, como Zari Gul e Basmina, não podem mais ser alcançadas. Em coordenação com a liderança da ONU e organizações humanitárias, a OIM defende que as autoridades de facto revoguem urgentemente a decisão que proíbe as mulheres afegãs de trabalhar para organizações humanitárias e garanta que os serviços básicos estejam disponíveis e acessíveis a todos, independentemente do sexo, etnia, estado civil ou financeiro, ou qualquer outra distinção, em conformidade com as suas obrigações no âmbito do direito internacional dos direitos humanos e das exigências culturais. 

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Nomes e detalhes de identificação foram alterados para proteger a identidade dos retornados. 

Esta história foi escrita pelo Diretor de Mídia e Comunicação da OIM Afeganistão, Léo Torréton.

Para mais informações, entre em contato com: ltorreton@iom.int 

 

[¹] Para mais informações, consulte ACLED Visão geral regional da Ásia-Pacífico de dezembro de 2022